Tudo e ao mesmo tempo (2023)
trecho de texto de Flávio Cerqueira
Tudo e ao mesmo tempo (2023)
trecho de texto de Flávio Cerqueira
“Era tudo papel no começo”, disse Marcelino para me explicar que o trabalho foi amadurecendo dentro do seu processo, na prática diária do fazer artístico. No desenrolar dos papeis em seu estúdio, com um olhar atencioso, Marcelino percebe que a própria curvatura do papel pode se tornar assunto no trabalho e quebrar a rigidez do plano para explorar novas possibilidades desenvolvidas em uma série de trabalhos que o artista chama de empenados.
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Barra Funda, São Paulo
11 de novembro de 2023
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Obs: trechos do texto da exposição coletiva Tudo e ao mesmo tempo, na HUM arte e projeto.
Do não visto inclinado (2019)
por Lilian Gassen
Fazemos muitas coisas em nossa passagem pelo mundo. Destas, algumas são para alimentar a carne e outras tantas para o pensamento e emoção, e, ainda, há aquelas feitas para passar o tempo. Essas coisas todas, boas ou más, estão aqui, coabitando esse mundo e ocupando-o tanto quanto nós. E delas derivam uma infinidade de outras coisas necessárias para uma cadeia produtiva que vai da realização, estocagem, aplicação, descarte, até a destruição daquelas coisas primeiras.
Nesse ciclo permanente de coisas para as coisas, muitas daquelas que são derivações são feitas para não serem notadas no processo, para passarem despercebidas diante de algo com maior relevância[1]. Isso acontece, em boa medida, porque as coisas derivadas são camufladas por sua desimportância. Elas se escondem dobrando a esquina da linha reta, esse caminho mais curto, entre nós e nossos objetivos.
Do horizonte vasto que se abre virando a esquina, na interseção do caminho, desviados do foco de nossos objetivos, pururucam montanhas de utensílios, burocracias, atividades meio, tudo muito ordenado, justificado, legalizado, historicamente embasado. Desse modo muito articulado e complexo nos perdemos e nos aprisionamos nessas montanhas de desimportâncias que normalmente nem vemos. Cada um de nós, imerso em nossa vida privada, constrói ciclos próprios de coisas para as coisas. Com mais ou menos consciência, com mais ou menos critérios, justificamos uma série de meios, pequenos ou grandes, para um fim que nos é caro. Nós abrimos concessões…
E apesar dessa condição, é no desvio de foco dos objetivos que acontece o desequilíbrio de todo um contexto. O que, em si, não traz caos ao sistema como um todo, mas com certeza proporciona momentos de consciência e reflexão sobre esse moto contínuo. Esse exercício do desvio não é novo[2], temos que admitir, e talvez acompanhe mesmo o ciclo permanente de coisa para as coisas, pois afinal de contas, mesmo com as concessões, parece que ainda possuímos alguma autocrítica.
O projeto Fora de Serviço, de Bruno Marcelino, se propõe a dobrar a esquina e selecionar coisas derivadas de uma coisa primeira. Dentro de seu ciclo de coisas para as coisas, imerso em sua trajetória como artista, a linha reta que ele persegue se encerra na pintura, no desenho e na escultura. Contudo, ao perseguir esse objetivo, volta e meia ele se desvia quando percebe as coisas desimportantes que estão de certa forma à mão, nas burocracias e atividades meio de seus processos produtivos.
Bruno Marcelino está constantemente instaurando em sua prática cadeias produtivas e se desviando delas. E a troca constante entre a menor distância para concretizar seus objetivos e o desvio é o motor da sua produção. Sua pintura fim acontece porque ele faz estudos de cor para coisas derivadas. Seus objetos Fora de serviço existem porque ele constrói suportes para produzir suas pinturas. E esses são só exemplos. Quem já visitou o atelier do artista sabe que aquele lugar se configura como a própria interseção do caminho. Tudo lá é possibilidade e amontoamento. E quantas possibilidades! Marcelino as coleciona, organiza, reconfigura, arquiva, pendura, larga pelos cantos, como faz com suas ferramentas de marcenaria, moldagem e pintura.
A hierarquia comumente existente entre a coisa primeira e a derivada não se estabelece na cadeia produtiva do artista. Não é difícil notar seu desconforto com o ciclo mesmo de coisas para coisas. Tal lógica é quebrada nessa conjuntura, da mesma maneira como observada na inserção dos ready-mades, de Duchamp, ou na de todos os objetos Trouvées do Surrealismo, passando pelos objetos minimalistas, ou ainda na experiência fashion de roupas feitas para não serem usadas. Nestes casos não há justificativa e nem fim, mas muitos meios que tornam inoperante a noção de finalidade das coisas. E isso, para aqueles que estão acostumados com o sistema é simplesmente inaceitável: “isso é arte?!”
Inoperantes, tortas, desimportantes e falhas enquanto placas, essas coisas do projeto Fora de serviço já fazem parte desse nosso mundo. E elas nos incomodam aqui. Primeiro por sua escala, que desobedece o rito escultórico do corpo no espaço (aquele objetivo) para se materializar nas dimensões de uma coisa derivada qualquer. Segundo, porque em parte, também mantêm uma aparência camuflada pelos reflexos, em algumas de suas superfícies, do espaço onde se instala. E, terceiro, elas têm um pé a mais que as inclinam em relação a ortogonalidade, esse “abrigo quentinho” para toda estrutura. Isso tudo desestabiliza a cadeia sem explicação prévia ou justificativa plausível.
A tentativa de descrever coisas como essas “fora de serviço” para analisá-las é um despropósito. Porque elas estão menos para o olho, por serem coisas derivadas, do que para o entendimento global delas na conjuntura a que pertencem[3]. Não há incômodo maior para os apressados em percorrer o caminho do que constatar que na beleza da cor, forma, superfície e da materialidade, em si, não está a arte. Veja bem, nestes casos, cor, forma, superfície e materialidade não são itens de contemplação. Ao contrário, eles se apresentam como marcações ou indícios da relação sempre conflituosa, mesmo que não vista, do ciclo das coisas para as coisas, como também se constata no caso das Caixas (de frutas) de Sérgio Sister.
Virando a esquina, Bruno Marcelino, com suas coisas, nos obriga a ver como num reflexo do espelho, mesmo que contrariados, a incongruência na roda viva que construímos, nos inserimos e mantemos, sem muitas vezes questionar sua necessidade, naturalidade ou realidade. Essa imagem refletida não é bonita, nem agradável, como acontece quando somos abruptamente confrontados com outsiders nos semáforos, viadutos, saídas de restaurantes. Não é bonita, mas é inevitável pelo próprio funcionamento do sistema, e serve para nos explicar quem somos e o que fazemos de nossas vidas.
Curitiba, 24 de julho de 2019
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[1] Esse critério de relevância está inevitavelmente associado à noção de finalidade da coisa primeira. E, conforme a importância da coisa, e sua finalidade na conjuntura a que pertence, o “fim justifica todo e qualquer meio” na cadeia produtiva; de pequenas transgressões, passando por envenenamento coletivo à devastação ambiental sem precedente.
[2] São exemplos disso a decisão de Rodin de não mais usar bases em suas esculturas, ou a nova regulamentação do Estado de São Paulo proibindo a utilização de canudos plásticos para beber. Nestes casos, apesar de diferentes e distantes no tempo e espaço, a eliminação dos dois itens (já coisas derivadas), faz também desaparecer, pela perda de necessidade, uma série de atividades meio e utensílios dessas cadeias produtivas.
[3] Avizinhados às coisas de Marcelino na inoperância e na arte, mas sem serem uma consequência natural entre si, estão os Objetos Caipiras de João Osório Brzezinski, algumas instalações e intervenções de Eliane Prolik, os desastres de Carina Weidle, as piscinas de Rodrigo Dulcio. Todas coisas derivadas que friccionam as engrenagens da cadeia, e por isso mesmo nos fazem olhar para o sistema com mais desconfiança.
Pinturas Sem Limites (2017)
trecho de texto de Marco Silveira Mello
Bruno Marcelino é quase um recém-chegado no circuito de arte. Bastante jovem, têm poucas exposições no currículo; essa é uma de suas primeiras participações. Mesmo assim, demonstra grande qualidade e maturidade em seu trabalho. Também as suas obras manifestam a convicção que o desempenho do jogo da arte, necessariamente, só se torna possível na presença de opostos; através da participação de distantes. A pintura e a escultura são os contrários que ele convoca para o jogo. O problema é que o limite que separava a pintura da escultura e que vingou em um extenso período da história da arte já não existe. Sabemos: as pinturas têm corporeidade e os corpos físicos dispõem de cores. Assim, como qualquer material pode ser utilizado no feitio de pinturas, as esculturas podem abrigar qualquer cor. Contudo, embora vivamos essa realidade, que a pintura e a escultura não são acontecimentos opostos, noção solidamente abrigada em nosso imaginário, Bruno, contra tudo isso, busca nos fazer ver que, ainda assim, pintura e escultura são duas realidades distintas e conflitantes.
Em nossa imaginação, a despeito da escultura e da pintura não se encontrarem em franca oposição, ocorrem conceitos que foram forjados em momento em que vigorava essa oposição. Tais conceitos definem o que é uma pintura e o que é uma escultura e quando colocados ao lado das certezas do presente aprontam intrincado paradoxo. É, justamente, explorando esse jogo de paradoxos que o artista monta a sua poética. Sua atuação reforça os antigos conceitos, por intermédio de acontecimentos – criados por ele – que estendem simultaneamente uma estreita natureza com valores da pintura e da escultura moderna; dotando as urdiduras conceituais de concretude. É como se a própria pintura, a própria escultura estivessem ali para dizer da correção da ideia; estivessem ali para dizer que efetivamente há uma distância entre a pintura e a escultura e que elas demonstram essa ocorrência.
Nesse jogo, exige-se que os exemplares criados detenham efetivas qualidades escultóricas e pictóricas, do contrário, deita-se tudo a perder. Note-se que, mesmo que a equação não se apoie sobre o mundo imediato, mas, sim, sobre o conceito de arte, ainda permanece a exigência de estreita sintonia entre referido – o conceito de arte – e a referência – o que o artista apresenta. Daí, o seu esmero no fazer escultórico e o requinte com que a pintura se mostra. Ele precisa que aceitemos que esses exemplares, que foram criados por ele, tenham qualidade para invocar a arte para que, posteriormente, também aceitemos que estão investidos da condição de arte.
A história da arte ingressa no cerne do fazer artístico nesse contexto. Bruno vai buscar apoiar os seus feitos nesse arsenal de fatos realizados no âmbito da pintura e da escultura, tidos como arte. Quer nos assegurar que os acontecimentos promovidos por ele se estendem daquele grande arquivo; que ocorre uma relação de continuidade entre estes e aqueles. O que, efetivamente, é verdade, visto que veladamente se pronunciam tantos nomes da arte no âmago de suas criações.
Todo esse esforço haveria de ser perdido, caso o artista não encontrasse também um modo peculiar de juntar a pintura à escultura: uma maneira que ao mesmo tempo as tornasse tão imediatamente próximas que acabassem por se tornar um só corpo, e tão prontamente afastadas, tão distantes entre si, que víssemos nesse corpo a presença de dois fenômenos distintos e antagônicos. E assim são os feitos de Marcelino: são uma coisa só e são duas coisas diferentes; são pinturas e esculturas.
Há uma área no objeto que consente essa diversidade: empurra cada qual para seu canto, permite que a pintura deslize em direção à escultura, aceita que a escultura corra em direção à pintura e entrelaça os atributos dos diferentes. É o ponto que não comparece pintado, onde a pintura comparece somente de maneira virtual. Precisamente aí, nesse local, é que todos os enlaces encontram a possibilidade de se concretizarem. Quando a placa espelhada é percebida sem os reflexos coloridos, o conjunto adquire uma condição escultórica; quando o colorido virtual comparece, o conjunto é apreendido por sua natureza pictórica. Além disso, é nesse ponto que a unidade da forma encontra a sua probabilidade de ocorrência: é aqui que o enlace se arruma.
Não fosse essa falta, não haveria o folguedo das linguagens, não existiria o enlace dos diferentes, nem ao menos os diferentes. Nesse ponto que configura um oco, tudo se amarra. E o que se junta é a presença e a falta. Quando temos a pintura, a escultura vaga; quando temos a escultura, falha a pintura; quando temos dois, não temos um; quando temos um, o dois se ausenta. Toda beleza da dialética entre os diferentes se sustenta nesse vácuo. É por estar preenchido pela ausência, que os que faltam têm permissão de figurar; que o que não ocorre se torna possível.
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Curitiba, 23 de setembro de 2017
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Obs: trecho do texto da exposição Pinturas Sem Limites, com os artistas Bruno Marcelino e Fernando Burjato, na galeria Casa da Imagem.